O
Paradoxo da Moralidade
por
Felipe Amaral
Quando
Deus dizer “Ame!”, obedeça, mas não se surpreenda quando Ele te
mandar odiar.
Há
implicações de cunho filosófico que nos levam a conclusões que
não só podem aparentar-se paradoxais, mas de fato o são. Ao
refletirmos a respeito da ética humana ou mesmo a respeito de todos
os vieses que envolvem a ideia de moralidade, subjacente em cada
humano desígnio e ação consolidada, vemo-nos emparedados por
questões as quais não nos permitem chegar a respostas definitivas.
Sobre isso podemos pontuar a problemática essencial da incapacidade
cognitiva ou mesmo de se chegar à “certeza intelectual”,
necessária à caminhada moral sobre esta terra (postulado a ser
defendido no decorrer deste texto, mas que acerca do tal já deixo
expresso que pode até abrir vaga a algum tipo de “paradoxismo”,
mas não necessariamente a um agnosticismo confessional). Vejamos.
Quando pensamos estar certos no tocante a um intento, só poderemos
remeter-nos a algo inerente (prescrito pelo que seja o Ser
Necessário!) ao nosso ser para que possamos sustentar tal convicção,
de outro modo, tudo não passaria de mera opinião, ainda que pudesse
ser tido como o plano mais solidário e amoroso que pudéssemos
pensar ser (há “como que” a urgência de um Ser Moral Necessário
que firme “ontologicamente, existencialmente” qualquer disposição
como, de fato – boa!). Ao fim, a questão é: O que é “ser mau”?
Se recorrermos a Bíblia – com os olhos voltados para nossa “doada”
concepção de moralidade – veremos ordens impossíveis –
relacionadas à perfeição (de fato!), que é inatingível neste
plano – e imperativos que deixariam qualquer um que apelasse à Lei
Natural (Romanos 2.14-16) boquiabertos, dado o grau de repugnância
provocado pelos tais (se entendidos ao “pé da letra”
(rigidamente!), por via da literalidade ou de modo “aquiescente”,
ou seja, sem as amarras hermenêuticas confeccionadas por uma ou
outra vertente teológica – assunto este, ao que nos ateremos –
sucintamente, mas não menos racionalmente – mais à frente).
Exemplos são o extermínio de bebês cananeus (com ordem implícita
em Dt 7.1,2 cf Js 6.21 e na aquiescência divina posterior a ação
tal) e a ordem para o sacrifício de Isaque (Gn 22.1-18) – que,
apesar de não ter sido levado a cabo, pressupõe, pela justificação
de Abraão, que sua disposição fosse genuína quanto a querer
praticá-lo, sendo assim, contado como “ato executado”,
baseando-nos no que é expresso em Mateus 5.28 e Hebreus 11.18. E
aqui faz-se necessário deixar salientado que, mesmo com a inclinação
de alguns a pensar que sejam assuntos fáceis de resolver, a análise
mais apurada acerca dos tais mostra que existe sim, principalmente na
questão do caso de Abraão, uma problemática essencial que permeará
toda a Bíblia e se erguerá como dificuldade, por conseguinte, para
cristãos, judeus e quaisquer adeptos do texto bíblico como “cânon”
moral.
As
Ordens Possíveis Impossíveis
Deus,
na melhor das hipóteses, parece não estar sujeito à nossa
concepção de moralidade (nosso entendimento - “dado por Ele
mesmo!” - da Lei Natural – Rm 2.14-16), de outro modo, Ele jamais
ordenaria o sacrifício de Isaque (Gênesis 22.1-18). Em Jeremias
32.35 o texto expressa-se assim (grifo nosso): “
Também edificaram
os altos de Baal, que estão no vale do filho de Hinom, para fazerem
passar seus filhos e suas filhas pelo fogo a Moloque; o
que nunca lhes ordenei,
nem me passou pela mente,
que fizessem tal abominação, para fazerem pecar a Judá”. Diante
de tal passagem, alguém poderia explicitar que “não passou pela
mente de Deus” o sacrifício a Moloque, mas não que não o tenha
passado este voltado a Ele próprio. Claro que uma pessoa que erige
pensamento tal já está disposta a defender qualquer coisa –
inclusive a morte de bebês a fio da espada, até mesmo hoje! - mesmo
ela própria sabendo que a Lei Natural escrita na sua mente reluta
contra tal e, se não, coisa comum por certo não seria, visto que
pessoas do mundo todo reúnem-se ao redor de textos tais (Josué 6.
21; 11. 11, 14, 15, 20 cf. Dt 7.1, 2) para debaterem por horas e
horas ainda e a história da igreja está repleta de casos de
teólogos e filósofos cristãos que se ativeram a linhas tais
buscando respostas, devido à inquietante sensação trazida ao
coração por tais questões. Estou consciente de ter misturado uma
questão com outra, cito, a questão de Abraão e o extermínio dos
cananeus. Fiz isso por entender que, ainda que eu me ativesse somente
e puramente à ideia da moralidade por trás de quaisquer dos dois
casos, já estaria lidando com todos os outros quantos possam haver
no registro bíblico, visto que o que subjaz é o que se mostra
imperante e não a escolha de um fato em si. Elencando as implicações
(via inquirições) cita-se: E se alguém dissesse hoje que Deus o
mandou matar os infiéis? Ou sacrificar filhos? (já realço aqui,
prevendo um eventual apelo à “Progressão Revelacional” ou ao
“Cessacionismo” de alguns que tal apelo já subentende a
resistência moral à dada ideia, mas façamos um esforço,
transportemo-nos a tempos patriarcais, “e agora, José?” Será
que tais teologias poderão salvar-nos?) Continuando... E, diante das
ordens supracitadas, asseverasse que este alguém deveria ser
perfeito como Ele é? Pensemos um pouco. A qual tipo de perfeição
Deus estaria se referindo? Compliquemos ainda mais as coisas. E, se
passasse à mente deste alguém que matar bebês não condiz com
qualquer ideia de punição por crime, nem de cunho religioso? Existe
tal pecado, por imputação, digno de pena capital (cf. Ezequiel
18.1-5, 19,20 - ainda que este texto possa ser entendido por via de
espiritualização do mesmo)? O que você faria se visse alguém
prestes a passar a fio de espada o filho em um altar? Telefonaria
para a polícia? Usaria as próprias mãos para evitar tal coisa? E,
se presa (por tentativa ou execução do homicídio!), esta pessoa
seria considerada “digna” de ser internada em um hospício? Ou
digna de pena capital? Voltando à sua concepção da Lei Natural,
dada por Deus, como este alguém poderia pensar ser justificado por
tal ato? E, já que, no caso de Abraão, o Anjo interveio, por que
Ele fez isso, visto que aquilo tinha sido ordenado pelo próprio
Deus? Seria errado e certo ao mesmo tempo? Alguém poderia ser
justificado via cometimento de pecado? E se não é ou seria pecado,
com base em que poder-se-ia afirmar isso? Os fanáticos do islã
também não poderiam justificar-se desta forma? Resta-nos a árdua
tarefa de alcançar a certeza de qual Deus é o certo! Mas se
discernirmos um de outro com base na moralidade, não estaríamos
fazendo da própria moralidade um deus que nos serviria de crivo para
sabermos, ao fim, quem de fato é o Deus certo? E, na verdade, como
saberíamos se nossa ideia de moralidade não estaria só arraigada a
coisas terrenas? E como provar que não esteja? Pelo Princípio da
Analogia? Mas se a Bíblia evidencia coisas que parecem contradizê-lo
e se mostram insolúveis, como as já citadas e mesmo o problema
Soberania Divina-Livre Arbítrio Humano? Onde estaria a certeza
humana diante da impossibilidade de convicção? Na fé cega? Mas
parece-nos que esse tipo de fé é simpática aos fanáticos, não?...
Nos
questionamentos, se você prestou atenção, eu findei com
reticências. Há muitas questões ainda que poderiam ser levantadas.
E cada resposta gera outra leva de questões. Fato é que o problema
torna-se tão grande que, nem uma existência digna de ser comparada
à longevidade dos patriarcas bíblicos poderia ser suficiente para
esgotar todas elas, quanto mais as respostas às tais!
A
solução seria deixar de lado textos bíblicos que, na melhor das
expressões, parecem contradizer à Lei Natural. Mas aí estaríamos
singrando por águas perigosas. As pessoas poderiam, dado o
precedente, cortar o que quisessem das páginas da Escrituras,
tomando como base questionamentos que pudessem aparecer com o tempo e
que também se tornassem insolúveis como estes citados. E, outra, se
só apelássemos para a via hermenêutica a fim de colocarmos
desfecho no imbróglio (como já fazemos!), incorreríamos no erro de
erigirmos outro tipo de precedente que poderia, ou mesmo, pode ser
utilizado por pessoas ditas mal-intencionadas. A respeito deste
último precedente, eu prometi falar mais e aqui cumprirei o trato,
ainda que laconicamente. Vejamos. Quando nós somos leitores da
Bíblia deparamo-nos com várias traduções, notas de rodapé e
comentários que juram nos ajudar a entender textos ditos
complexos... Caso é que já se passaram séculos e séculos de
debates e há muitas questões não respondidas de forma conclusiva.
Não que isso vá nos afastar da Escritura! Não é preciso isso! O
que quero dizer é que não são só tais questionamentos que nascem
diante de textos complicados que nos colocam em maus lençóis, mas,
com as supostas respostas, outras implicações ainda mais cabeludas
que vão tornando nossas vidas quase impraticáveis do ponto de vista
racional. Alguém pode ir ao hebraico, ao aramaico, ao grego, e até
mesmo ao latim para poder sanar problemas tais que, muitas das vezes,
são ainda mais nublados por tais recursos, e não considerar honesta
e conscientemente que as coisas lhe foram explicadas de modo a sanar
todas as suas dúvidas quanto à compreensão do texto sacro (e
quanto à veracidade da compreensão alcançada, quando diante de
questionamentos racionais que nos vêm à mente no decorrer da vida).
Há questões de ênfase linguística (capacidade ou poder maior de
expressão de palavras de tal língua comparadas às mais modernas).
Há questões de estilo. Muitas outras gramaticais. “Certo” é
que não teríamos vida tão vasta assim para podermos solucionar
todos os problemas que temos e que teríamos no decorrer da lida dita
solucionadora dos tais. Exemplo disso é o mundo de livros não
solucionadores e doutores ainda encafifados em tão desgastantes
questões. E isso não é apelar para a incapacidade de alguns, mas
olhar honestamente para a realidade sem ares de pura relutância
idiossincrática, coisa tal que toma de assalto vários estudiosos
quando desses apontamentos. Agora ater-me-ei, por finalização à
reflexão sobre o que pensava ver-se por analogia a Deus: a Revelação
Geral, mais precisamente expressa, na Lei Natural e sua compreensão.
A
Analogia do Engano e a Transcendência da Moralidade Divina
Eu
sempre pensei, e por via de um texto em particular (Mateus 7.9-12) e
de todo o texto sagrado, genericamente (visto pelas lentes embaçadas
do princípio da analogia), que a moralidade de Deus não só fosse
igual, dadas as proporções e nunca as equivocações, à Lei
Natural, mas que o próprio Deus fosse a mesma, falando em nossas
mentes, mas acabei por ver-me desbaratado, diante das implicações
geradas pelo mal no mundo quanto pela forma de Deus lidar com as tais
por via de sua justiça ou reparação. Caso é que Deus mata, por
meio ou não de agentes secundários, filhos, como se lhe fossem
iguais a outras posses (visto que, ao fim, restituiu-lhos em dobro!)
para levar a cabo provações disciplinares (Jó 1.18,19), tira a
vida de um que, sem permissão, toca na Arca da Aliança, outros que
lhe levam fogo estranho (para ato cerimonial) e ainda outros que
retêm propriedades, mas a pessoas dadas ao concubinato (não
excetuando a possibilidade dos antes citados, que teriam que “pagar”
como os que agora cito!) como Abraão, Jacó e Davi Ele chama de,
respectivamente, “Pai da Fé”, “Príncipe de Deus” e “Homem
Segundo o Coração de Deus”. Devendo-se acentuar que em casos como
o de Jacó e de Davi poder-se-ia elencar mais falhas graves. Tenho
ainda a acrescentar, tirando casos específicos, que a própria
escrita, ou ainda, escolha de palavras e frases a serem lançadas no
texto sagrado, levam-me – como a não-leigos e academicistas, como
eu não o sou – a conclusões paradoxais que minam qualquer tipo de
confiança que se possa ou mesmo se pudesse haver ainda na capacidade
da cognição humana para compreender qualquer coisa. Sendo que se a
refutação às minhas palavras pudessem ser feitas com base na
comparação (analogia), não só a que vemos o próprio Cristo
fazendo entre Deus e a realidade humana, ora em parábolas, ora em
asseverações doutrinárias, que só fariam sentido se colocadas no
altar da analogia (aqui repousa o “paradoxismo”!), como em todo o
restante da Bíblia, poderíamos dizer que a própria semelhança
afirmada tacitamente não poderá dar lugar à ideia de sujeição de
Deus à Lei Natural, que mais parece ser uma criação divina,
podendo até ser considerada um falso deus, alvo de idolatria (pense
em Abraão não se dispondo a fazer o ordenado sacrifício por causa
dela!). Agora, você poderia perguntar-me: Até onde isso leva o
homem? Como você ainda vive diante disso? Às tais perguntas eu
responderia com um texto, mas como que cegamente também: “Porque
no evangelho é revelada, de fé em fé, a justiça de Deus, como
está escrito: Mas o justo viverá da fé” (Rm 1.17).
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