quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Boatos que o povo conta IV

Boatos que o povo conta IV
1
Não sou de dizer mentira
Nem desbocar-me em insulto,
Mas, um dia, deparei-me
Com a miséria de um vulto.
Repreendi o infeliz
E, ele, afrontar-me não quis
E, após, manteve-se oculto.
2
De muita coisa na vida
Fui testemunha ocular.
Já lutei co'assombração
Que nos mina o bem-estar
E até já vi – e dou prova! –
Cadáver sair da cova,
Deixando o vão tumular.
3
Já vi morto dar as caras
Em espetáculo dramático.
Casa de janela aberta
Mostrar vulto fantasmático.
Espírito chulo andrajoso
E até rastro luminoso
De fluido ectoplasmático.
4
Não prezo necromancia
Nem com vulto eu me conecto,
Mas já tive o desprazer
De ver surgindo do infecto
Da escuridão um fantasma
Que deixou minha'alma pasma
Quando avistei seu aspecto.
5
Não gosto nem de feitiço
Nem qualquer serviço imundo,
Mas, passando perto dum –
Entre um mistério profundo –
Avistei um bicho preto
Parecendo um esqueleto
Da sepultura oriundo.
6
Não sou de andar muito tarde
Nem de buscar, na calada,
Obra de macumbaria
Que o povo bota na estrada,
Mas, um certo dia, eu vi
Como um vulto de um zumbi
Voando na encruzilhada.
7
Em casa, eu já vi de tudo
Que cause abalo e pavor,
Alma se olhando no espelho
E outra no ventilador,
Com elmo, armadura e gládio,
E até girando do rádio
O seu sintonizador.
8
Deparei-me com espírito
Fazendo aparecimento
No banheiro lá de casa
E outro lá, tomando um vento
Na janela da cozinha...
E, constantemente, eu tinha
Com isso um assombramento.
9
Espectro que causa horror
Só vem pra trazer enguiço.
Desforra a cama da gente,
Faz e desfaz” o serviço.
Nem apele pra despacho,
Pois só piora o escracho
A miséria de um feitiço.
10
Exorcizei capetada
De corpo de conhecido.
Tirei espanto de casa
De quem havia morrido.
Mas, de vez em quando, vejo
Vulto, porém não desejo,
Só que o bicho é atrevido.
11
Não tenho muito a dizer
Pra desvendar o mistério,
Mas sempre se encontra alguém
Que avistou no cemitério
Algum espírito vagante
E, em todo caso, é flagrante
O impacto deletério.
12
Não gosto de'ir a enterro
De pessoa velha ou nova.
É que, quando eu apareço
Toda vez perto de cova,
Eu vejo um vulto escondido.
E, que isso tem ocorrido,
O povo todo comprova!
13
Tem alma que do Além
Parece sofrer desterro.
E eu que a* alma não me apego
Nem nutro qualquer aferro (^),
Sou sempre o mais visitado
Por fantasma desterrado
Que escapuliu do enterro.
(*não pus crase por indefinir
com o singular)
14
Não gosto de visitar
Casa onde existe velório
Que lá eu avisto sempre
O evanescente e inglório
Espírito do falecido...
Mas sempre o que conto é tido
Por espetáculo ilusório.
15
Nem gosto de tomar conta
De defunto no caixão,
Porque sempre vejo o mesmo,
Vez por outra, erguendo a mão
Ou querendo escapulir
Do recinto pra sair
Do vão da repartição.
16
Em funerária eu não vou,
Pois que é costume encontrar
Com alma de falecido
Pedindo pr'eu entregar
Pagamento de água e luz
Pra partir, fazendo jus,
Sem se esquecer de pagar.
17
Tem morto até que deixou
Algum credor abusado
E me pede pra que eu passe
Na casa do “condenado”
E entregue lá a quantia,
Mas não me entrega a valia
Do negócio a ser quitado.
18
Eu cansei de quitar dívida
De espírito encalacrado
Pra ver se o bicho “infiliz”
Me deixa aqui sossegado.
Só o que há em recorrência
É caso de inadimplência
De fantasma endividado.
19
Tem pessoa até que escolhe
De morrer em caso raro,
Mesmo no exato dia
De quitar, sem despreparo,
Dívida no mundo dos vivos...
E eis “lá” mais um dos motivos
De crer que há fantasma avaro.
20
Não gosto de ver visagem
E isso aí não é dengo,
Que, com visonha eu debato,
Discuto, luto e arengo,
Que não há quem queira ter
O desprazer de bater
Todo dia com monstrengo.
21
Vidente não sabe nada,
Médium pra mim não é páreo,
Cartomante é brincadeira,
Xamã de mim é contrário,
Que, neste terreno inculto,
Eu já cansei de ver vulto
De fantasma mortuário.
22
Toda vez vou à cozinha
Pra repreender visonha,
Que tem uma fantasmada
Que é velhaca e sem vergonha
E se dana a aprontar...
Já tô pra não me agüentar
Com tanta coisa medonha.
23
No chuveiro tem fantasma,
E espírito no sanitário,
Tem abantesma na pia,
No quarto dentro do armário,
Na cozinha e na sacada
É tanta da fantasmada,
Que eu já perdi o sumário.
24
Logo eu que vivo sozinho!...
Tudo me tira o juízo.
Pensava em ficar tranquilo,
Mas já tô de sobre-aviso
Com tanta alma lá em casa
Assando carne brasa
E me dando prejuízo.
25
Nem há mais o que contar,
Com tanta da'assombração.
Que é de esgotar repertório
De conto de aparição
Esse meu viver sem glória,
Que não ficou uma história
Que não desse narração.

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